Um Testemunho
Queridos amigos:
Eu sou a M.ª Dulce, a irmã mais velha da Josélia.
Porque sei que estão interessados em saber um pouco mais sobre a história da minha irmã, tentarei da melhor maneira transmitir-vos o que me tem sido dado viver e aprender com ela.
Fica muito por dizer, mas um pouco da história da minha irmã, faz parte da minha história sagrada e uma parte muito particular da minha vida.
Para onde quer que vá, e quanto tempo eu ainda tenha para viver, a sua vida entrosa-se com a minha, como uma parte maravilhosa do meu passado, do meu presente e do meu futuro.
A minha intenção é, acima de tudo, dar-vos a entender o que sempre a Josélia me tem transmitido e que eu própria tentei assimilar: o objectivo do percurso da vida é sentir a existência.
Um abraço para todos.
M.ª Dulce
Um Testemunho
São passados quase 15 anos sobre os primeiros sintomas da doença. A minha irmã, nessa altura, tinha uma vida profissional muito activa, tendo como funções a Direcção Comercial do Hotel Quinta do Lago no Algarve. Assim, corria a Europa em reuniões, só regressando a casa aos fins de semana. O seu núcleo familiar, constituído por ela, marido Vítor (funcionário da TAP) e filho André tentou adaptar-se a esse ritmo e as tarefas eram divididas e aceites com grande naturalidade.
Quando chegou o Verão (1992) fomos todos de férias (as nossas duas familias), como habitualmente já fazíamos. Ficámos em sítios diferentes, mas encontrávamo-nos com frequência. Naquele dia de Julho combinámos almoçar juntos e recordo-me vagamente de ela me pedir para cortar o pão, porque tinha falta de força num dedo. Ri-me e lá executei a tarefa! Jamais nos poderia ter passado pela ideia... que tudo já tinha começado.
Regressados de férias e cada um com as suas ocupações, reencontrávamo-nos quase todas as semanas em casa do nosso pai. A partir de determinada altura comecei a notar que a minha irmã estava diferente: via-a fraca, cambaleava um pouco. Insisti para que fosse ao médico, tendo-me ela dito que já tinha consulta marcada.
Na noite de Natal, sempre passada em minha casa, a Josélia disse-me que depois de ter feito alguns exames o médico de clínica geral a tinha encaminhado para uma consulta de neurologia. Não foi preciso mais nada, nesse momento o meu coração disse-me o que estava para chegar!
Em Fevereiro o resultado chegou com a Ressonância Magnética e estávamos perante o cruel teste da provação: tinha-lhe sido diagnosticada uma "Esclerose Lateral Amiotrófica" – doença degenerativa que em pouco tempo a levaria a uma cadeira de rodas. A minha irmã tinha nessa altura quarenta anos de idade, uma familia linda e um percurso profissional esplendoroso.
De uma maneira quase heróica ela reagiu com um grande pragmatismo (como se fosse possível) e continuou a trabalhar, embora obviamente, menos acelerada. Quando me contou o resultado dos exames, perante o meu assombro, disse-me: “há pessoas a quem sai a sorte grande e não rejeitam, a mim saiu-me o outro lado da moeda e eu vou ter força para ir em frente”. Era como se o aparecimento da doença a responsabilizasse para com o destino, descobrindo um valor novo e profundo e não cedendo de forma masoquista.
Por meu lado, não foi fácil arranjar disponibilidade para agir com subtileza no sentido de favorecer a ajuda. Sentia-me entontecida com a preocupação e perguntava-me se a imagem que ela revelava publicamente (inclusive a nós) era a real, mas sim uma defesa contra o sofrimento. É aí que reina o mistério insondável, o cerne de cada individuo.
Durante todo o ano de 1993 a Josélia ainda manteve uma actividade profissional activa, embora os problemas de locomoção fossem já bastante visiveis. Também a nível de escrita tinha dificuldades, e um dos primeiros sintomas foi não conseguir fazer a sua assinatura como habitualmente: teve que deixar de assinar documentos, cheques, etc. Então começou a delegar e num momento de grande lucidez pediu ao meu marido para ser tutor do André (é como se tivesse uma prémonição de que o Vítor, seu marido também pudesse ficar doente).
Em Julho de 93, já bem conscientes da doença e com diagnóstico feito pelos melhores neurologistas de Portugal, fomos a Inglaterra e foi observada no centro de pesquisa da doença do Neurónio Motor pelo Professor Nigel Lee, ilustre neurologista inglês. A consulta que levou várias horas confirmou tudo o que nós já sabíamos, tendo-nos sido dito que não valia a pena voltarmos, e numa enorme demonstração de humildade, o Prof. Nigel Lee disse-nos que os médicos em Portugal sabiam tanto como ele, ou seja, quase nada sobre a doença.
Em Outubro de 93 e depois de um jantar em minha casa a minha irmã caíu. Quando cheguei a casa deles, depois do telefonema do meu cunhado, encontrei-a num estado miserável: com contusões na cara e os dentes da frente literalmente partidos. A partir daí tornou-se inviável manter a actividade profissional e entrou em baixa médica. Mesmo assim ainda conseguia trabalhar à distância, como consultora técnica. Assim, recordo, sentiamo-la francamente motivada a nível profissional, entusiasmando-se com o trabalho reencaminhado e vibrando de alegria quando tudo corria bem.
Os momentos mais dolorosos eram, sem dúvida (já naquela altura), a muito condicionada locomoção, assim como a grande dificuldade nas tarefas básicas, como tratar da higiene pessoal, deitar-se, levantar-se, vestir-se, etc. Tudo tinha que ser feito com muita calma e concentração, o que levava muito tempo. Foi muito doloroso para todos aceitar o que parecia e era um intenso sofrimento.
Em Março de 94 voltámos a Londres, mas desta vez o seu regresso já foi em cadeira de rodas. No Verão de 95 foi o último em que fizemos férias juntos: eles os três e nós os quatro. Alugámos uma moradia com piscina e divertimo-nos imenso, dando longos passeios, ela na cadeira e nós a pé.
Em meados de 1997, e para incredulidade de todos, foi diagnosticado ao Vítor, meu cunhado, um tumor maligno na perna esquerda.
Em dois anos e até morrer, sofreu vários internamentos, uma cirurgia dolorosíssima e vários ciclos de radioterapia e quimioterapia... Acompanhei-o sempre e amei-o como verdadeiro irmão.
O mundo mais uma vez desabou naquela casa. A minha irmã sempre esteve consciente da situação do marido, e eu própria acreditei que ela não tivesse forças para resistir à partida. Pelo contrário, fortaleceu-se, embora o seu estado já fosse bastante débil na altura.
Não tenho dúvida que ela viveu pelo filho, com o cuidado afectuoso e o amargo sofrimento. Naquele momento, ser mãe não consistiu somente em garantir a sobrevivência física e a continuação dos estudos do André; foi muito mais do que isso, foi a maternidade no seu significado total, o alicerce mútuo, permitindo que ambos sobrevivessem através do contacto com a experiência e o mistério da vida.
Em Agosto de 2001 a Josélia deixou de engolir. Internámo-la numa clínica privada, onde permaneceu mês e meio. A partir daquela altura começou a ser alimentada por sonda naso-gástrica.
Na madrugada de 13 de Dezembro desse mesmo ano deu entrada no serviço de urgência do Hospital Curry Cabral com uma crise cardio-respiratória. Graças à auxiliar de enfermagem que a acompanhava durante a noite, foi possível chegar ao hospital com vida. Aí, tanto eu como o André fomos informados (não sem alguma frieza, por parte da médica que a atendeu) de dois cenários possíveis: a) fazerem-lhe uma traqueostomia e ficar ligada à máquina para sempre; ou b) não resistir e acabar por falecer.
Rezei muito para que se desse o milagre e ainda nos fosse permitido voltar a estar com ela com vida.
Foi submetida a respiração artificial, colocaram-lhe um tubo a partir da boca, descendo pela garganta. Penso que a minha irmã esteve em pré-coma nos dias a seguir, mas aos poucos começou a melhorar. Ela somente com os olhos disse-me: “quero ficar aqui”.
Posteriormente, passadas umas semanas, fizeram-lhe uma traqueostomia.
Não mais saíu dos Cuidados Intensivos.
Também não mais foi possível ouvir-lhe um som.
É óbvio que a comunicação é muito dificil, mas entretanto já toda a gente se habituou a entendê-la através de uma enorme capacidade de olhar. Quando as coisas se tornam mais complicadas, soletramos as letras e ela pisca os olhos. Conseguimos falar sobre tudo e não rara é a vez que é ainda ela que dá opiniões e conselhos.
Vários testes com computador foram feitos, mas continua a ser muito dificil, uma vez que ela está privada de qualquer movimento.
Queridos amigos:
Eu sou a M.ª Dulce, a irmã mais velha da Josélia.
Porque sei que estão interessados em saber um pouco mais sobre a história da minha irmã, tentarei da melhor maneira transmitir-vos o que me tem sido dado viver e aprender com ela.
Fica muito por dizer, mas um pouco da história da minha irmã, faz parte da minha história sagrada e uma parte muito particular da minha vida.
Para onde quer que vá, e quanto tempo eu ainda tenha para viver, a sua vida entrosa-se com a minha, como uma parte maravilhosa do meu passado, do meu presente e do meu futuro.
A minha intenção é, acima de tudo, dar-vos a entender o que sempre a Josélia me tem transmitido e que eu própria tentei assimilar: o objectivo do percurso da vida é sentir a existência.
Um abraço para todos.
M.ª Dulce
Um Testemunho
São passados quase 15 anos sobre os primeiros sintomas da doença. A minha irmã, nessa altura, tinha uma vida profissional muito activa, tendo como funções a Direcção Comercial do Hotel Quinta do Lago no Algarve. Assim, corria a Europa em reuniões, só regressando a casa aos fins de semana. O seu núcleo familiar, constituído por ela, marido Vítor (funcionário da TAP) e filho André tentou adaptar-se a esse ritmo e as tarefas eram divididas e aceites com grande naturalidade.
Quando chegou o Verão (1992) fomos todos de férias (as nossas duas familias), como habitualmente já fazíamos. Ficámos em sítios diferentes, mas encontrávamo-nos com frequência. Naquele dia de Julho combinámos almoçar juntos e recordo-me vagamente de ela me pedir para cortar o pão, porque tinha falta de força num dedo. Ri-me e lá executei a tarefa! Jamais nos poderia ter passado pela ideia... que tudo já tinha começado.
Regressados de férias e cada um com as suas ocupações, reencontrávamo-nos quase todas as semanas em casa do nosso pai. A partir de determinada altura comecei a notar que a minha irmã estava diferente: via-a fraca, cambaleava um pouco. Insisti para que fosse ao médico, tendo-me ela dito que já tinha consulta marcada.
Na noite de Natal, sempre passada em minha casa, a Josélia disse-me que depois de ter feito alguns exames o médico de clínica geral a tinha encaminhado para uma consulta de neurologia. Não foi preciso mais nada, nesse momento o meu coração disse-me o que estava para chegar!
Em Fevereiro o resultado chegou com a Ressonância Magnética e estávamos perante o cruel teste da provação: tinha-lhe sido diagnosticada uma "Esclerose Lateral Amiotrófica" – doença degenerativa que em pouco tempo a levaria a uma cadeira de rodas. A minha irmã tinha nessa altura quarenta anos de idade, uma familia linda e um percurso profissional esplendoroso.
De uma maneira quase heróica ela reagiu com um grande pragmatismo (como se fosse possível) e continuou a trabalhar, embora obviamente, menos acelerada. Quando me contou o resultado dos exames, perante o meu assombro, disse-me: “há pessoas a quem sai a sorte grande e não rejeitam, a mim saiu-me o outro lado da moeda e eu vou ter força para ir em frente”. Era como se o aparecimento da doença a responsabilizasse para com o destino, descobrindo um valor novo e profundo e não cedendo de forma masoquista.
Por meu lado, não foi fácil arranjar disponibilidade para agir com subtileza no sentido de favorecer a ajuda. Sentia-me entontecida com a preocupação e perguntava-me se a imagem que ela revelava publicamente (inclusive a nós) era a real, mas sim uma defesa contra o sofrimento. É aí que reina o mistério insondável, o cerne de cada individuo.
Durante todo o ano de 1993 a Josélia ainda manteve uma actividade profissional activa, embora os problemas de locomoção fossem já bastante visiveis. Também a nível de escrita tinha dificuldades, e um dos primeiros sintomas foi não conseguir fazer a sua assinatura como habitualmente: teve que deixar de assinar documentos, cheques, etc. Então começou a delegar e num momento de grande lucidez pediu ao meu marido para ser tutor do André (é como se tivesse uma prémonição de que o Vítor, seu marido também pudesse ficar doente).
Em Julho de 93, já bem conscientes da doença e com diagnóstico feito pelos melhores neurologistas de Portugal, fomos a Inglaterra e foi observada no centro de pesquisa da doença do Neurónio Motor pelo Professor Nigel Lee, ilustre neurologista inglês. A consulta que levou várias horas confirmou tudo o que nós já sabíamos, tendo-nos sido dito que não valia a pena voltarmos, e numa enorme demonstração de humildade, o Prof. Nigel Lee disse-nos que os médicos em Portugal sabiam tanto como ele, ou seja, quase nada sobre a doença.
Em Outubro de 93 e depois de um jantar em minha casa a minha irmã caíu. Quando cheguei a casa deles, depois do telefonema do meu cunhado, encontrei-a num estado miserável: com contusões na cara e os dentes da frente literalmente partidos. A partir daí tornou-se inviável manter a actividade profissional e entrou em baixa médica. Mesmo assim ainda conseguia trabalhar à distância, como consultora técnica. Assim, recordo, sentiamo-la francamente motivada a nível profissional, entusiasmando-se com o trabalho reencaminhado e vibrando de alegria quando tudo corria bem.
Os momentos mais dolorosos eram, sem dúvida (já naquela altura), a muito condicionada locomoção, assim como a grande dificuldade nas tarefas básicas, como tratar da higiene pessoal, deitar-se, levantar-se, vestir-se, etc. Tudo tinha que ser feito com muita calma e concentração, o que levava muito tempo. Foi muito doloroso para todos aceitar o que parecia e era um intenso sofrimento.
Em Março de 94 voltámos a Londres, mas desta vez o seu regresso já foi em cadeira de rodas. No Verão de 95 foi o último em que fizemos férias juntos: eles os três e nós os quatro. Alugámos uma moradia com piscina e divertimo-nos imenso, dando longos passeios, ela na cadeira e nós a pé.
Em meados de 1997, e para incredulidade de todos, foi diagnosticado ao Vítor, meu cunhado, um tumor maligno na perna esquerda.
Em dois anos e até morrer, sofreu vários internamentos, uma cirurgia dolorosíssima e vários ciclos de radioterapia e quimioterapia... Acompanhei-o sempre e amei-o como verdadeiro irmão.
O mundo mais uma vez desabou naquela casa. A minha irmã sempre esteve consciente da situação do marido, e eu própria acreditei que ela não tivesse forças para resistir à partida. Pelo contrário, fortaleceu-se, embora o seu estado já fosse bastante débil na altura.
Não tenho dúvida que ela viveu pelo filho, com o cuidado afectuoso e o amargo sofrimento. Naquele momento, ser mãe não consistiu somente em garantir a sobrevivência física e a continuação dos estudos do André; foi muito mais do que isso, foi a maternidade no seu significado total, o alicerce mútuo, permitindo que ambos sobrevivessem através do contacto com a experiência e o mistério da vida.
Em Agosto de 2001 a Josélia deixou de engolir. Internámo-la numa clínica privada, onde permaneceu mês e meio. A partir daquela altura começou a ser alimentada por sonda naso-gástrica.
Na madrugada de 13 de Dezembro desse mesmo ano deu entrada no serviço de urgência do Hospital Curry Cabral com uma crise cardio-respiratória. Graças à auxiliar de enfermagem que a acompanhava durante a noite, foi possível chegar ao hospital com vida. Aí, tanto eu como o André fomos informados (não sem alguma frieza, por parte da médica que a atendeu) de dois cenários possíveis: a) fazerem-lhe uma traqueostomia e ficar ligada à máquina para sempre; ou b) não resistir e acabar por falecer.
Rezei muito para que se desse o milagre e ainda nos fosse permitido voltar a estar com ela com vida.
Foi submetida a respiração artificial, colocaram-lhe um tubo a partir da boca, descendo pela garganta. Penso que a minha irmã esteve em pré-coma nos dias a seguir, mas aos poucos começou a melhorar. Ela somente com os olhos disse-me: “quero ficar aqui”.
Posteriormente, passadas umas semanas, fizeram-lhe uma traqueostomia.
Não mais saíu dos Cuidados Intensivos.
Também não mais foi possível ouvir-lhe um som.
É óbvio que a comunicação é muito dificil, mas entretanto já toda a gente se habituou a entendê-la através de uma enorme capacidade de olhar. Quando as coisas se tornam mais complicadas, soletramos as letras e ela pisca os olhos. Conseguimos falar sobre tudo e não rara é a vez que é ainda ela que dá opiniões e conselhos.
Vários testes com computador foram feitos, mas continua a ser muito dificil, uma vez que ela está privada de qualquer movimento.