Little Things Make the Difference

A blog about an ALS patient and her experience from the onset of the disease to her everyday life in an ICU.

Monday, November 12, 2007

A Minha Vida no Hospital

As entradas que virão de seguida serão testemunhos dos profissionais de saúde que contactam diariamente com a Josélia. Pretende-se, através destes testemunhos, dar uma visão abrangente do quotidiano da Josélia e transmitir de forma coerente a pessoa que ela é.

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Chamo-me Cristina e sou enfermeira. Quando escolhi cuidados intensivos aos 27 anos procurava desenvolver competências técnicas, capacidade de resposta em situações críticas, pro
curava conhecer o extremo da doença e do sofrimento até onde vamos para cuidar o Homem e tratar a doença.

Com o passar do tempo e já sem me preocupar tanto com o domínio da tecnologia fui-me apercebendo do cenário real que envolve o doente internado em UCI, apercebi-me da extrema dor quer física quer emocional que doentes, familiares e amigos experimentam quando aquele ou aquela que lhes é querido está internado em estado crítico ou mesmo em perigo de vida.

Treinam-nos nas escolas de enfermagem para cuidarmos de pessoas com toda a nossa dedicação mas sempre com a noção de que, não devemos esquecer que somos profissionais e logo devemos sabe “separar as águas”, focalizar-nos no nosso objecto de trabalho a pessoa, sem no entanto, nos envolvermos de outra forma senão essa.

Com o passar do tempo verificamos que as coisas não funcionam assim tão linearmente com frequência encontramos pessoas que pela sua riqueza interior a sua força de viver a sua forma de estar na vida e a sua caminhada na doença, conseguem sem esforço penetrar a barreira que separa o doente do técnico, transformando-se em mestres sobre, coragem, amizade, solidariedade, são exemplos de vida e por vezes até amigos.

E é neste contexto que se encontra a minha relação com a Josélia, a minha e a de muitos outros que a têm acompanhado ao longo destes 6 anos.

Quando deu entrada na UCI do HCC era mais uma doente ventilada com o prognóstico já estabelecido, ventilação mecânica para toda a vida, dependência de cuidados de profissionais de saúde. Uma doente com esclerose amiotrófica incapaz de se autocuidar ou assegurar qualquer tipo de actividade de vida diária. Tínhamos outros doentes nestas circunstâncias na unidade, logo pensávamos também já conhecer o futuro desta doente. Quando dá entrada um doente com este tipo de patologia olhamos uns para os outros e fazemos as perguntas habituais, “mas porquê ventilar estas pessoas?”, o que é que temos para oferecer? O que é que realmente é correcto fazer…

Estas questões não surgem porque somos insensíveis à vida, mas porque nos preocupamos com as pessoas. A tristeza e a solidão a revolta a que aparentemente parecem estar condenados, além de todas as limitações motoras inerentes à doença levam-nos a fazer estas perguntas.
E o mesmo aconteceu com a entrada da Josélia um caso em tudo semelhante à Dona Idalina, que já se encontrava connosco à 3 anos.

A D. Idalina era uma mulher com cerca de 50 anos muito elegante, uma senhora que se cuidava, uma mulher viajada, culta, mãe de um filho adulto que não vivia em Portugal e por isso lhe enviava com frequência cassetes gravadas onde lhe contava as novidades e decisões da sua vida e lhe repetia o quanto gostava dela. Visitava-a a mãe uma Senhora já com idade avançada que vinha invariavelmente visitá-la, mesmo com muito sacrifício da sua parte. Lembro-me que lhe oferecíamos uma cadeira e ela ficava horas a olhar para a filha conversando com ela, inicialmente com feed back da D. Idalina, depois com o passar do tempo num monólogo triste e que nos incomodava interiormente.

A D. Idalina foi perdendo cada vez mais faculdades, deixou de ter qualquer movimento motor, por fim só nos apercebíamos do seu estado de consciência porque um fio de lágrimas lhe escorria pela cara, os olhos ficavam vermelhos e edemaciados. Lembro-me, inicialmente, de tentarmos falar com ela por gestos e mímica e da dificuldade que sentíamos em entendê-la, por vezes desviávamos o olhar tentando ignorar os seus apelos.

Não pensem que é por sermos pouco humanos, não é isso, é porque não sabemos o que fazer ou dizer naquele contexto naquela forma de prisão é inexplicável e angustiante, preferíamos correr para os doentes em estado agudo que desafiam toda a nossa capacidade de actuação mobilizam os nossos conhecimentos teórico/práticos e não nos faziam reflectir.

No entanto há sempre alguém que tem essa paciência infinita e que ultrapassa a angústia, focalizando-se no doente, a enfermeira Rosa era essa pessoa, nos turnos da noite quando tudo estava calmo ficava horas a falar com a D. Idalina por mímica, conseguia entender o que a preocupava, por sua vez a D. Idalina tinha verdadeira confiança na Rosa, expondo-lhe a sua vida…


Ao lado da D. Idalina encontrava-se a Maria com cerca de 70 anos, com patologia semelhante.
Quando a Josélia deu entrada era este o panorama, de 11 doentes 2 eram crónicos ela seria a 3ª doente ventilada a ter que viver na unidade.


A nossa sociedade ainda não possui estruturas e equipas com formação específica para este tipo de situações, logo estão destinados a viver nas UCIs. Comecei cedo a aperceber-me do drama destas pessoas e das UCIs que estando preparadas para o doente crítico não o estão em termos de formação do staff para situações de doença crónica além de bloquearem camas para doentes em estado crítico. Estes doentes têm necessidades que os doentes em situação crítica não possuem. O cuidar do doente crónico tem de ser personalizado, continuo para sempre, por isso é especial e específico, mas isso foi o que a Josélia me ensinou...


Quando a conheci tinha dado entrada no serviço após paragem respiratória no domicílio sendo transportada para a urgência. Tinha sido perguntado à família se queria que fosse ventilada, estes apavorados e perplexos perante a situação disseram que sim, e a Josélia deu entrada na UCI do Hospital de Curry Cabral.


Achei-lhe graça tinha uns olhos enormes um ar assustado e ao mesmo tempo curioso por tudo o que a rodeava. Pouco tempo depois e após algumas tentativas sem sucesso de ventilação espontânea, foi traqueostomizada. Começámos a falar por mímica e fomo-nos conhecendo.
Os familiares no início não se aproximavam de nós nem pareciam com vontade de o fazer, ás vezes somos vistos como persona não grata, entendo.


A Josélia parecia interessada em tudo o que a rodeava, ria das nossas conversas, interagia connosco, depressa começou a ter rituais de vida, o banho e os cremes que gostava de colocar por determinada ordem, as sessões de fisioterapia. Pareceu-me alegre e aceitou a sua situação com tranquilidade sem choros sem a dramatização que seria natural nesta situação pensava eu.
Um dia perguntei-lhe se gostava que lhe lêssemos um livro, como gosto muito de ler imaginei que ela gostaria de acompanhar uma história.


Tinha acabado de ler um livro Intitulado “Muitas vidas muitos Mestres” do Brian Weiss, achei que se o lêssemos à Josélia a ajudaria a simplificar mais a sua existência e até desenvolver alguma esperança de que tudo tivesse um sentido maior. A Josélia dizia não acreditar em Deus pelo menos da forma como o “vendem” as religiões. Dizia não ter fé, de modo que pensei que este livro seria um bom começo para outras perspectivas sobre a Vida e a Morte.


Nos turnos da noite quando estava tudo sossegado ou nas tardes de menos trabalho comecei a ler-lho até ela querer. Depressa surgiram adeptos desta modalidade, a enfermeira Inês, a Susana, a Elvira e outras enfermeiras juntaram-se ao clube e assim seguiram-se mais alguns livros. Valia a pena só para a ver entusiasmada a discutir o livro connosco, sempre através da mímica facial e das expressões faciais da Josélia que são uma das suas grandes armas de comunicação.



Um dia a Dulce irmã da Josélia veio a uma das suas muitas visitas e viu os livros, aproximei-me contei-lhe o que estávamos a fazer disse-lhe que ficasse descansada que a Josélia estava “bem entregue” que cuidávamos bem dela tentando no que nos era possível assisti-la em todas as suas necessidades.

A Dulce foi confiando mais em nós e depois de algum tempo passado, já trocávamos livros. Apercebi-me que também a Dulce procurava respostas e bebia das mesmas fontes que eu
A Josélia parecia perfeitamente socializada com o staff e com os outros doentes, queria saber sobre os outros como ia a evolução da situação de doença. Quando alguém morria reagia com naturalidade e não parecia incomodada demasiado com o aparato à volta, afinal a morte é algo natural faz parte da existência.

Sabia que a Josélia tinha vivido intensamente os anos 60 e 70, gostava das músicas revolucionárias da época. Um dia combinamos na nossa equipa, (trabalhamos por equipa na altura éramos 6), levar a guitarra e cantar-lhe algumas músicas e assim foi.
Zeca Afonso, musica popular portuguesa, José Mário Branco, Vitorino Xutos e Pontapés com o “Homem do Leme” entre outros constituíam o nosso reportório.

A Josélia não se limitava a ouvir, cantava desalmadamente, sem produzir som parecia cantar mais alto do que nós. Ficávamos sideradas e emocionadas com a tremenda energia daquela mulher. Gerava-se uma força fantástica naqueles momentos, poderosa, no entanto, nem todos partilhavam a nossa visão e uma das vezes uma Senhora que estava na cama ao lado disse-nos que não fizéssemos mais barulho estávamos num Hospital, foi ai que me apercebi que o doente crónico deveria ter um espaço próprio com um plano de cuidados personalizado. Mas a intervenção da doente não nos demoveu de continuar enquanto o tal espaço não surgia.
Também na equipa multidisciplinar encontrava-mos adeptos desta forma de estar e os que eram absolutamente contra e tentavam demover-nos das iniciativas.

Considero normal esta atitude, as UCIs não estão estruturadas nem pensadas para o doente crónico e em geral o profissional vai para este tipo de serviço à procura de outro tipo de saber, além disso somos muito conservadores tudo o que se afaste da normalidade e do conceito que temos de determinada situação ou objecto é à partida rejeitado.

Quando íamos de férias trazia-mos sempre uma prenda para a Josélia.
Uma das vezes trouxe-lhe um búzio grande, para ela ouvir o mar. Gostou, mas o que desejava mesmo era ver-o-mar, cheirá-lo, ouvi-lo.

Uma enfermeira recém formada que tinha vindo de Coimbra, a Cátia, que também desenvolvera uma amizade com a Josélia teve a ideia de a levar a ver-o-mar, pensei que era uma boa ideia embora de difícil concretização. Mas a Cátia é uma força da Natureza e nada a demove quando acredita no que está a fazer. Fazia parte do grupo de pessoas que acreditam que não há limites para a imaginação e para o poder do querer.

Pensámos então em levar a Josélia ao Cabo Da Roca. A Cátia organizou tudo, escreveu as cartas necessárias para pedir autorização para a saída ao exterior da Josélia, alugou a ambulância para a transportar. A Josélia não teve conhecimento de nada dissemos-lhe com a conivência da médica que nos acompanhou, que ia fazer um exame ao exterior uma ressonância magnética. O pior é que ela não descansou nada durante a noite ansiosa, de manhã tranquilizamo-la e dissemos que era surpresa.

Nessa manhã de sábado, foram a enfermeira Mafalda, eu a Cátia a Cristina a Drª Maitê , a Josélia. Estava uma manhã chuvosa e fresca, cruzámos a marginal, parámos em Santo Amaro de Oeiras, tiramos a Josélia na maca e descemos até à areia, fomos buscar água ao mar e conchas com areia para que ela as sentisse e aquele momento com a natureza e com a grandiosidade daquela mulher fizeram-nos sentir pequenos e ao mesmo tempo elevados. Que sorte, que bom poder viver esta experiência.

Curioso, chovia mas quando parávamos havia uma auréola no céu sem nuvens, nunca ficámos molhados. Aconteceu o mesmo quando finalmente chegámos ao Cabo da Roca. Havia pessoas à volta e inicialmente suscitou curiosidade e até vi algumas caras contrariadas como se estivéssemos a invadir um espaço que não era nosso, mas também vi gente bem disposta que felicitou.


O momento alto desta viajem foi colocar a Josélia junto ao muro a contemplar o mar, e quando o filho André chegou foi a sua felicidade estampada no rosto.